segunda-feira, 28 de setembro de 2009

ITINERÁRIO DO AMOR, SONHO ENTRE NOITES





Mês de Agosto, Noite fria, mesmo com agasalhos pesados ainda sim sentíamos o frio intensamente.

Estava retornando para casa, esperava o ônibus no Largo da Concórdia, ali, vários meliantes aguardam a Perua Kombi que os levará, para um albergue, afim de que possam dormir bem longe do frio que congela , adoece e muitas vezes matam. Ao chegar sentei-me sob o abrigo do ponto, para esconder-me da garoa fina que caia sobre a cidade, ali se encontrava um homem, que também tentava esconder-se, encolhido, com uma blusa fina, e uma sacola pequena na mão.

Pude notar pelas suas feições curtidas pelo sol e pelo sofrimento, que se tratava de uma pessoa oriunda de alguma cidade do Nordeste; cabelos levemente esbranquiçados, barba mal tratada, envolto em roupas surradas e um par de alpargatas já corroídas pelo tempo.

Naquele momento ia comer uma maça que tinha na bolsa, enquanto esperava o ônibus... Porém o olhar faminto do homem, me fez pensar que poderia chegar em casa e comer uma outra, então estendi o braço e ofereci-lhe a maça o mesmo recusou acanhado... mas insisti....e ele não resistiu e pegou.

Enquanto mastigava famintamente aquela maça, disse-me: __ nossa moça, a senhora não ficou com medo de mim? Muitos têm!
Respondi:__ a princípio sim; Mas não senti má intenção no senhor, e afinal não podemos julgar apenas pela aparência; então começamos a conversar.

Neste dia o ônibus demorou mais que o de costume e ele começou a desfiar o rosário de sua história, contou-me como chegou aqui em São Paulo, vinha atrás de sonhos, infelizmente o monstro da cidade grande havia começado a engoli-lo.

Levado pela fome e desespero, deixara sua família e a terra natal, na Paraíba, partindo para o Sul em busca de dias melhores, mal sabia ele que encontraria dias muito piores, e o pior de tudo experimentaria a solidão, o desprezo e a rejeição de um mundo cheio de preconceitos, violência e medos.

O ônibus apontou na esquina, lembrei-me que tinha outra maça, abri a bolsa rapidamente e entreguei-lhe, despedindo-me dele e entrei no ônibus; Sentei-me, liguei o rádio do celular.

Curto muito uma rádio que só toca MPB e naquele momento ouvia uma música do Chico Buarque “Meu Guri” enquanto o ônibus percorria as ruas no trajeto de volta para casa, fui pensando na vida daquele homem que nasceu numa situação precária, fugiu da fome e ela o perseguiu.

No dia seguinte lá estava o homem, perguntei seu nome e ele me respondeu que se chamava Francisco Leonardo, tinha 35 anos e contou-me mais sobre sua Terra. Naquele dia ele estava mais cuidado, havia feito a barba, estava com o cabelo penteado, então me contou que havia catado papel o dia inteiro, e com o dinheiro havia comprado um desodorante para se perfumar, pois não podia falar com alguém tão cheirosa, fedido como ele estava... achei engraçado ele dizer aquilo, e acabamos os dois rindo da situação.

Ele contou-me que na sua terra a falta d’água era uma constante, a lavoura e o pouco gado morriam pela forte seca e pelo sol abrasante.

A água tinha que ser buscada a quilômetros de distância, a cada dia a situação se agravava.
Os jovens partiam para as grandes metrópoles deixando para trás os idosos apegados a terra ou impossibilitados de viajar pelas intermináveis e difíceis estradas, e os que ficavam eram mulheres e crianças na esperança de que seus pais pudessem tirá-los daquela miséria.

Seus olhos marejaram naquele momento, perguntei se ele tinha deixado filhos e mulher, ele apenas balançou a cabeça confirmando, sua voz parecia-me embargada, perguntei a ele que se sofria tanto, porque não voltava para a família? Ele me respondeu: __Dona a vida aqui é muito difícil, trabalho o dia inteiro catando papel, ganho em média de R$ 15,00 por dia, como alguma coisa e o pouquinho que sobra guarda, mas vou precisar trabalhar muito para juntar o dinheiro de volta. __Não tenho casa, vou para o albergue e quando a perua não vem durmo na praça mesmo, mas a vida selvagem desta cidade, não nos deixa dormir, porque corremos o risco de perder tudo o que suamos muito para juntar. __Neste mundo aqui embaixo como se víssemos em uma selva, é bicho comendo bicho para sobreviver, uns não resistem se perdem na bebida, nas drogas, na marginalidade e muitos chegam à loucura. Antes de o ônibus vir, tirei da Bolsa um pacote de bolacha e um suco de caixinha e entreguei para ele, ele estendeu a mão e agradeceu... Logo o ônibus veio, ele perguntou meu nome, respondi.
E ele me disse :__ Uma abençoada noite dona Leila ! Entrei no ônibus, encostei minha cabeça no banco e no silêncio de meus pensamentos fui repensando minha vida também, às vezes reclamamos da vida, esquecemos de agradecer e de repente nos aparece alguém que gostaria de ter um pouquinho apenas do que temos e não valorizamos.

Comecei a conversar com Deus, pedi que me ajudasse a ajudar aquele moço, mas o que eu poderia fazer também estava tão cheia de desafios a vencer... Então me veio a mente a história de uma Moça que fazia Direito pela UMC e que dava atendimento dentro do trem para pessoas carentes, cheguei em casa fui para a internet, e pesquisei como ele poderia fazer para retornar para sua terra.

No dia seguinte o encontrei novamente, disse para ele procurar a polícia e tentar com uma Assistente Social uma forma de retornar para sua Terra.
Ele disse-me que iria tentar, mas então continuamos a conversar, ele disse-me que não confiava no governo, pois em sua terra uma vez apareceu um político por lá prometendo mundos e fundos, que iria acabar com a seca, prometeu perfurar poços artesianos e construir cisternas... Ele fora eleito, até cumpriu em parte sua promessa fez as perfurações, mas até hoje estão aguardando a instalação da bomba, que segundo as palavras do candidato só falta as bombas que estavam vindo e até hoje não chegaram.

Para descontrair brinquei com ele dizendo: Bom eu acho, que elas estão indo de tartaruga, pois até de jegue já haveria de ter chegado... Ele caiu na gargalhada.
É muito bom, fazer alguém sorrir quando o mundo parece ruir... Ele me disse: __ Moça fico pensando como a senhora tem coragem de conversar comigo, a maioria tem medo... a senhora é assim tão!!!!... eu completei... Perua! Ele riu e disse: Não... Não é isso. A senhora é distinta, não me parece alguém de se misturar.

Disse a ele:__ Não se acanhe, porque falei perua, é que uma senhora hoje ao admirar meus brincos me falou com a maior naturalidade: “Seu brinco é lindo e eu adorei para nós que somos assim bem peruas” combina com você e eu achei que combinaria comigo também. __ Não iria ficar surpresa se você também achasse que eu fosse perua... Pois ela foi tão natural que sai da sua loja de doces rindo. __Gosto de cuidar de mim, de me arrumar e quem achar que sou perua, pode achar não ligo, para uns sou mesmo, para mim apenas cuido de mim, o mundo já é tão triste que precisa de beleza e não de feiúra, se a natureza não ajuda muito a gente contribui.

Nós dois caímos na risada, entreguei um lanche para ele de pão com ovo, e uma garrafa de suco, e naquele momento , lembrei-me do significado do meu nome “ Negra como a noite”e do cumprimento judaico “LAILA-TOV” ( Boa Noite) pensei nos meus grandes amigos ( Fernanda e o Mestre Dellova) e peguei meu ônibus e lhe disse uma Boa Noite.

No dia seguinte, ele disse-me que havia ido à polícia eles o encaminharam a assistente social, e que talvez fosse conseguir voltar para sua cidade, ele estava feliz... E eu me senti aliviada.

Pois mesmo que a situação em sua terra não fosse à das melhores, estaria melhor que aqui, bem ou mal estaria em companhia de sua esposa, filhos e pais.
No trajeto de volta para casa lembrei-me das brincadeiras maldosas que são feitas com nossos irmãos nordestinos, sofridos e perseguidos por uma minoria de poderosos que só olham para o próprio umbigo e devem ter uma cabeça de passarinho, pois não tem a capacidade de perceber a dor e o sofrimento do próximo.

A chuva castigou São Paulo, e naquele dia não fui à faculdade, em casa fiquei preocupada com o Francisco, como e onde ele estaria seu lanche estava em cima da mesa, pensei será que comeu?

Porém na Quarta-Feira ele estava lá sorridente, havia conseguido uma passagem para voltar para casa na Câmara dos Vereadores, não conversamos muito sobre o assunto, pois ele trouxe um amigo para me apresentar, seu amigo chama-se Cícero. Conversamos, entreguei o lanche para ele, e ele dividiu com o amigo... O Cícero conta muitas piadas, pena que não sei contar, mas rimos muito enquanto esperava o Ônibus.

Despedimos-nos, e voltando para casa fui pensando: Se Deus não tivesse me encaminhado para aquela situação, para aquele local, talvez a vida do Francisco pelo frio, pelo medo, pela fome e pela falta de informação fosse mais um nas estatísticas dos mortos na miséria, na cidade mais Rica da América Latina. Portanto nunca pergunte por que dos fatos de sua vida... é melhor perguntar para que dos acontecimentos e com certeza encontrará a razão , o motivo dos acontecimentos e com certeza a resposta que procuramos.

Uma semana depois encontrei o Cícero que veio correndo dizer-me que o Francisco havia ido embora, ele pediu para o Cícero me agradecer, dizendo que nunca iria esquecer-me, que rezaria todos os dias por mim.

Naquele dia, retornei para minha casa com muitas lágrimas nos olhos, mas plena em ter feito o que era certo e correto, por ter vencido a barreira do preconceito e ter sido um instrumento de Deus na vida de alguém.

Concluí, então que: “A fé que transporta montanhas é a que com certeza leva os filhos de Deus a saírem de si mesmos, para ir de encontro ao irmão, uma vez que a benção nasce de um encontro para aquele que busca uma mão irmã, como reprodução da mão Divina.”

Temos medo de arriscar a vida na doação total , então ele paralisa nossa vida, esconde nosso amor, embota nossa consciência, altera nossa razão e impede nossa visão.

Ele nos faz fugir pela mentira, provocando reações de violência e destruição.
E para vencê-lo é necessário decidir-se a partir da confiança total e plena nas ações de Deus que nos guiará rumo a plenitude do exercício do amor, pois ele expulsa todo o medo, num dinamismo invencível da confiança e do amor.